Artigo: Uma banana apenas, por Paulo Piva
Numa cidade cada vez mais desflorestada e desmatada no seu todo, com cada vez menos árvores frutíferas, que não investe na criação de mais parques e de mais áreas verdes, tampouco na proteção do pouco verde que ainda resiste, que conta com uma zona rural imersa em agrotóxicos e uma zona urbana totalmente dedetizada e cimentada; numa cidade que aceitou que seus córregos e riachos se transformassem em esgotos a céu aberto e seus rios em enxurradas lamacentas e sem vida, que ultimamente vive um clima seco, com chuvas cada vez mais raras e ralas que parece que chegou para ficar, que produz tanto lixo e que trata esse lixo com tanto desleixo que parece que ela será um dia engolida por ele: em face desse quadro tão hostil, que é o da maioria das cidades brasileiras, e em alguma medida o de Itapira, como os poucos pássaros que ainda encontramos nessas cidades conseguem encontrar alimentos e assim sobreviver?
Esta é mais do que uma pergunta técnica que um especialista em pássaros, o ornitólogo, poderia fazer. Trata-se aqui de uma inquietação de alcance bioético, isto é, de preocupação com a qualidade de vida dos outros animais, dos animais além do animal ser humano que sempre esquecemos que somos, que também têm fome e sede, que sentem dor e medo, que ficam feridos e doentes, velhos e vulneráveis, enfim, que sofrem e que têm, tal como o macaco humano, necessidade de bem-estar.
Entretanto, infelizmente, nem todo macaco humano se preocupa e se solidariza com as dores, privações e crueldades sofridas pelas outras espécies animais. Esse tipo de macaco humano é o especista, um racista de espécie, que, além de achar que só o sofrimento, as necessidades e os interesses do animal humano merecem ser tratados com dignidade, menospreza as dores e as fomes dos demais animais sencientes, ou seja, dos outros animais que, tal como ele, também têm sensibilidade, interesses e emoções.
E é na perspectiva de um macaco humano não especista que retomamos a nossa pergunta de abertura, desta vez de forma mais direta e técnica: o que nossos bem-te-vis, pardais, sanhaços, periquitos, canários-da-terra, maritacas e, mais recentemente, tucanos, andam comendo para sobreviver em cidades como Itapira, nas quais frutos, frutas, ovos de ninho e insetos parecem ser cada vez menos abundantes e acessíveis em virtude da devastação ambiental, dos agrotóxicos e dos inseticidas, já que não é necessário ser um ornitólogo para saber que eles não comem pedra nem fazem fotossíntese?
Pássaros alimentam-se e gostam, por exemplo, de banana. Uma banana não acaba com a fome de um ser humano, que precisa mais de proteínas para sobreviver, mas é capaz de salvar o dia de muitos sanhaços e bem-te-vis pelo menos. Uma banana por dia, colocada num lugar em que esses pássaros se sintam seguros para poderem se alimentar, e teremos um restaurante acolhedor para esses desprezados, quando não um banquete muito animado, colorido e musical.
Há algum tempo venho tendo essa experiência de, com uma banana por dia, amenizar as dificuldades desses frágeis seres ariscos, e em vários locais. Uma dessas experiências ocorre num pequeno pedaço arborizado e bucólico da Vila Kennedy. Uma banana apenas sobre o tronco de uma árvore que foi atingida por um raio, colocada semi descascada debaixo da sombra de um abacateiro. Minutos depois e a poesia começa: sanhaços descem, bem-te-vis sobem, ligeiros desconhecidos de plumagem laranja e preta cortam de um lado para outro, até restar da banana apenas a casca com suas bicadas, como uma folha de sulfite com inúmeros garranchos. Com muita sorte, até solitários pica-paus é possível assistir naquele oásis. Tanta alegria, pureza e beleza em meio ao vazio, ao mecânico e ao absurdo do cotidiano causadas por apenas uma banana!
Ora, mas num Brasil completamente destruído, devolvido ao mapa da miséria e da fome pelo governo Bolsonaro e pelo esgoto político que as urnas imbecilizadas por fake news das eleições de 2018 colocaram no Planalto, não seria um luxo, um inaceitável desperdício, gastar com bananas para passarinhos, ainda mais estando a banana o preço que está?
Uma banana a mais ou uma banana a menos em nada alterará a realidade econômica e social do Brasil escolhido em 2018, mas talvez faça alguma diferença na sobrevivência de alguns seres inofensivos que não votaram em Bolsonaro, mas que, se pudessem votar em vez de voar, certamente não votariam nele. E é essa diferença que justifica o investimento nesse vício, que incentiva esse exercício bioético, essa terapia, essa prazerosa sensação de, com uma banana por dia, poder contribuir para tornar a Vila Kennedy em específico um pouco menos humana.
*Paulo Jonas de Lima Piva, 51, é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC)