Gazeta Itapirense

Nossa História – Matadouro Municipal foi administrado por uma mulher

“… menina ainda fui conhecer o Matadouro, por curiosidade infantil. Quando voltei para casa, mamãe castigou-me e alertou-me que aquele não era um lugar para menina de boa reputação. Esta admoestação feriu-me, ficou-me na cabeça, eu, criada em colégio de freiras, tendo uma irmã num convento, eu, tabelada aos rigores da época, como pude sentir vontade de entrar no Matadouro? Por muitos anos aquela reprimenda materna azucrinou meu consciente e nunca mais desejei ir naqueles lados. Entanto, ironia cruel, meu marido era funcionário do Matadouro!”.

Assim foi que Ana Isabel Rocha Machado, Dona Nenê Rocha, como era conhecida, descreveu para a historiadora Odette Coppos, sua primeira ida àquele lugar. Malgrado, não sabia que futuramente passaria a maior parte de sua vida prestando serviços naquele abatedouro.

Falar desta guerreira seria a coisa mais simples a se realizar, considerando seus atributos. Porém, difícil fica expressar a angústia que sentiu ao ter que assumir o lugar do marido na administração do Matadouro.

Ela, com toda sua docilidade, meiguice e fino trato, afinal sonhou e foi preparada desde a infância para casar-se, cuidar impecavelmente de uma casa e educar os filhos como ela mesma foi educada. Qual o quê! Um revés lhe tirou desse idílio: “… desfez-se me a candura habitual. Precisava tomar atitude. Criar energia. A circunstância obrigava-me a pleitear um emprego e por ironia, o mesmo emprego que era dele, substituí-lo na administração do Matadouro! Revesti meus atributos de mulher frágil, feminina, com a severidade que o caso impunha-me…”. Desta forma relatou ela para a mesma historiadora a partida de seu marido e sua ascensão ao posto por ele deixado. Assim, nascia uma nova mulher e um novo Matadouro.

Construído em estrutura sólida, com fachada austera e portal em belas linhas arquitetônicas, situava-se o primeiro Matadouro Municipal de nossa cidade à margem esquerda do Ribeirão da Penha (onde hoje está localizada a Estação Rodoviária). Inaugurado em 15 de março de 1918, o prédio atendia a todas as exigências do Serviço Sanitário da época. Possuía instalação bem acabada, dotada de um amplo pavilhão central e de duas enormes salas, sendo uma para o abate de bovinos, e a outra para suínos.

Dona Nenê quebrou um grande tabu em sua época

Poucos de nós devem se lembrar do Matadouro. Eu mesmo tive a sorte de em minha infância ser levado, como toda nossa classe, pelo professor Antonio Alcindo Torezan, para uma visita ao local, quando cursávamos o quarto ano do primário no então “Grupo Escolar Antonio Caio”.

Naquela época o antigo prédio do Matadouro estava em pleno funcionamento. Não nos foi permitido assistir ao abate, mas ficamos conhecendo todo o procedimento para tal. Nossas lembranças daquela época não são muitas, mas a escritora Odette Coppos nos auxilia com um relato, em seu trabalho “O Livro de Itapira”, de sua visita ao local: “Encontramos ordem e higiene que só a zeladora poderia exigir. Limpíssimas as largas passarelas de cimento, água tratada nos grandes depósitos para suficientes serviços do abate e outros fins, como lavagem do piso e dos novos galpões destinados a acomodação dos bovinos e suínos”. Através deste e de outros relatos deduzimos que em tais galpões os animais aguardavam sua hora para o abate. Vejam o que diz Dona Nenê Rocha: “Os bois que seriam abatidos, eram retirados dos lotes (e provavelmente levados para os galpões) Nunca tive medo, mas muitas vezes, retirava-me do serviço para choramingar no mangueiro. De mansinho eu chegava no meio deles, dos mais mansos, sussurando-lhes: ‘Boizinhos, vocês vão morrer, vão dar suas carnes para alimentação dos humanos que, num açougue, compram um quilo de lagarto, sem a menor noção de que aquilo foi pedaço de vocês, boizinhos meus’. Todavia, minha lamentação tinha que acabar porque o serviço não podia ficar parado”.

Imponente prédio ficava no fim da avenida Rio Branco

Assim foi que, antes, durante e depois da passagem de Dona Nenê Rocha pela administração do Matadouro, ele teve, nesta antiga edificação, serviços prestado ao povo itapirense por longos sessenta anos, quando um novo e moderno prédio foi construído na rodovia que liga Itapira a Lindóia para dar continuidade ao atendimento. O antigo Matadouro da Avenida Rio Branco foi desativado e o suntuoso prédio demolido em 1978.

Mas, como a história não pode parar, e o progresso anda a passos largos, a administração municipal da época, que era comandada pelo então Prefeito José Antonio de Barros Munhoz, houve por bem dar continuidade a utilização daquele espaço em prol da população. No local foi construída a Estação Rodoviária José Benedito Coloço, inaugurada em 30 de junho de 1982, que unificaria todos os embarques e desembarques de passageiros intermunicipais. Até então os atendimentos eram feitos em pontos isolados: o Expresso Cristália atendia no espaço da Rua José Bonifácio, onde hoje está o Cartório do Maurício Sabagg Law. A Viação Bragança tinha um guichê para venda de passagens dentro do Bar Central, na Praça Bernardino de Campos. E as empresas Gardênia e Serrano, faziam seus atendimentos no Largo da Estação, defronte a um bar na esquina com a Rua Alfredo Pujol.

Muitos acontecimentos se deram naquele espaço durante seus trinta e três anos de existência, e quem presenciou todos eles foi o empreendedor Ayres Benedito Souza Pinto Junior. Instalado em suas dependências no Bar São José desde a criação da Rodoviária, ele é o mais antigo comerciante da área e conhece muito bem os meandros daquele local. Afinal, começou junto com ela em 1982. Ele sabe falar como ninguém das mudanças e das inovações que ocorreram neste tempo e dos percalços por que passaram todos que ali trabalharam. Conhece funcionários, administradores, passageiros, andarilhos e toda sorte de pessoas que por lá transitam.

Quem passa hoje pelo local e se depara com aquela área totalmente revitalizada e muito movimentada, jamais imagina que ali tenha sido um reduto de agonia para os animais, de angustia para dona Nenê e de satisfação para a população nos idos em que os açougues da cidade eram abastecidos pela carne saída do saudoso Matadouro Municipal.

 

 

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