Gazeta Itapirense

Nossa História: Lá vai o trem e com ele nossas lembranças

Sou de um tempo em que o trem era um dos principais meios de transporte do país. Um tempo em que a cidade era cortada pelos trilhos e o apito das locomotivas era ouvido mesmo quando ela ainda estava distante.

Lembro bem do tempo em que eu ainda era um menino magricela de orelhas grandes e acordava no meio da madrugada. O sono, muitas vezes ia embora, os olhos secavam e eu ficava ali, quieto em minha cama, ouvindo o barulho das composições, que chegavam ou partiam rangendo suas engrenagens sobre os trilhos.

Como a linha do trem praticamente circundava a cidade, passando pelo bairro dos Prados e por trás do Cubatão, dava para ouvir claramente seu barulho enquanto ele seguia seu destino. Eu ficava ali, quietinho, ouvindo aquele som gostoso que embalava novamente meu corpo e acalentava meus sonhos de criança.

O trem e seus sons fizeram parte de minha infância de uma forma especial. Era nele que minha família embarcava para passar os finais de semana na fazenda São Miguel, em Martim Francisco, onde morava a família de minha tia Jacira, irmã de minha mãe.

Quando meu pai anunciava, no meio da semana, que no sábado a gente iria para a fazenda, era uma festa. Eu e a Vera, minha irmã mais velha, sabíamos que o passeio estava garantido e passávamos a contar os minutos até a hora de acordar bem cedinho no sábado para descer a rua da Estação, dobrar a esquina da Alfredo Pujol e alcançar minha avó Carmela, que há muito já havia feito o caminho com medo de perder o trem.

Como era gostoso estar ali na plataforma de embarque, ainda escuro, aguardando pela chegada do trem que vinha de Sapucaí com destino a Mogi Mirim. Quando ouvíamos o apito estridente da locomotiva que se aproximava era hora de começar a viagem.

Ainda ouço o barulho dos freios da locomotiva chegando na estação para nos levar. Posso ver o movimento daquele homem que recebia o trem e sentir o cheiro que exalava do vapor da caldeira.

A viagem sem pressa era o melhor de tudo. O dia começava a clarear e a paisagem se abria nas janelas enquanto a gente sacolejava em uma dos vagões.

Embora a distância fosse pequena entre as duas cidades e também entre Mogi e Martim Francisco, a viagem parecia durar uma eternidade. Quando chegava em Mogi Mirim havia a necessidade de trocar de composição e a baldeação era feita em poucos minutos para uma nova viagem até o destino final.

Hoje não há mais trem por aqui, não ouço mais seu barulho ritmado durante a madrugada, embora muitas vezes me pegue tentando encontrar algum som similar quando estou acordado. O trem há muito foi embora para nunca mais voltar e eu fiquei órfão de mais esse detalhe de minha infância.

Às vezes tento entender o motivo que leva os governantes a acabar com algo tão bom e eficaz como a estrada de ferro. Fico imaginando quantos caminhões de carga cabem nos vagões puxados pela locomotiva fumegante e quantos passageiros podem ser transportados em uma única viagem.

Será que eles não sabem que, além de acabarem com um dos meios de transporte mais econômicos que existia, colocaram fim também ao sonho de muita gente que, como eu, teve o trem como um companheiro de viagem e também das horas em que o sono ia embora durante a madrugada? Que desativaram, não só a estrada de ferro que cortava a cidade, mas o caminho entre o sonho e realidade de muita gente?

Lá vai o trem. Posso ouvir ao longe o barulho de seus vagões rangendo nos trilhos e o apito estridente a cada cruzamento para avisar que por ali irá passar uma parte da minha infância que foi embora para nunca mais voltar. Desse trem ficará apenas a lembrança dos bons momentos que todas aquelas viagens proporcionaram ou das muitas noites sem sono que fiquei ouvindo seu sacolejar pelos trilhos da vida.

 

* Matéria publicada na versão impressa do jornal A Gazeta Itapirense de 14 de junho de 2024 pelo jornalista Humberto Butti

 

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