Gazeta Itapirense

DOI-CODI: O dia em que conhecemos o inferno

Quem atualmente passa em frente à 36ª Delegacia de Polícia da capital paulista, instalada na Rua Tutóia, no bairro do Paraíso, nem de longe percebe que ali funcionou, nos fundos, um dos famigerados centros de tortura do regime militar do Brasil (1968-1985).

O DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI); nasceu das Operações Bandeirantes (Ope-Ban), nos anos de linha dura do regime.
Foi o centro do terror em que os chamados inimigos da revolução tinham passaporte carimbado para atrocidades contra os direitos humanos.

Segundo a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, 51 militantes políticos foram mortos no local, sendo 47 quando ali reinava Carlos Alberto Brilhante Ulstra, coronel do Exército e comandante do aparato repressivo estava ligado de 1970 a 1974.

Herzog na foto histórica: suicídio forjado

O jornalista Wladimir Herzog (Vlado) e Manoel Fiel Filho não tiveram chance à vida. A morte de Vlado ficou mais conhecida, pois além de ser profissional de mídia (trabalhava na TV Cultura), seu assassinato foi forjado como suicídio, já descartado. Manoel Fiel Filho era operário metalúrgico e foi preso e torturado até à morte por supostamente pertencer ao Partido Comunista.

Hoje, remodelada, a 36ª DP, guarda internamente poucas características dos anos de chumbo. A delegacia, na realidade, faz parte de um complexo com outras duas unidades, que também pouca coisa relembra aquele aparato existente anteriormente. Mas os resquícios ainda reverberam. E forte.
A antiga carceragem não existe mais. Foi modificada. Paredes de alvenaria e biombos de concreto, além de reformas sobre reformas, tentaram intencionalmente sepultar o passado  tenebroso com o silêncio do cimento. Para muitos, apesar de a DP, pertencente à Polícia Civil, não ter ligação direta com as torturas, serviu de fachada legal para as atrocidades. Os então subversivos entravam por ela para simples depoimentos. Quando desciam a escada, em direção à carceragem, sabiam que seriam torturados.

  Cela em que o jornalista Vladimir Herzog foi encontrado enforcado. Hoje serve para despejo

ARQUITETURA DA DOR

Nossa equipe de reportagem foi recebida pelos responsáveis pelo atual prédio em junho de 2013 para a elaboração desta matéria, que reproduzimos pela primeira vez em nossa plataforma digital.
A carceragem mantinha todo um sistema de suplício, denominada de arquitetura da dor, tamanho o desvario da personalidade dos torturadores. Um deles ganhou o cognome de ‘risadinha’ porque dava gargalhadas perante os gritos lancinantes dos torturados.

Dentre os instrumentais de dor os mais utilizados para torturar eram a cadeira do dragão, pau-de-arara, choques elétricos, espancamentos, ‘soro da verdade e geladeira’.

Montagem mostra cela típica do DOI-Codi, com instrumentos de tortura. Vlado teria ficado aí

O Gazeta conversou com o então delegado da 36ª DP, Márcio de Castro Nilson. Ele disse que, quando entrou para a Polícia, desconhecia a existência de torturas e que seu trabalho era de investigação e não de colaboração com o regime. Tinha 22 anos então.
Para Nilsson, há um equívoco histórico que paira sobre a 36ª DP. Conforme o delegado, a delegacia em questão nunca abrigou um centro de torturas e que o terror aconteceu nos fundos do atual dispositivo policial, lá na carceragem, comandada e dominada então pelos militares.
A declaração foi muito contestada por entidades de direitos humanos, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), parlamentares progressistas e membros da Comissão da Verdade.

Dr. Márcio de Castro Nilson recebeu nossa equipe de reportagem em 2013

Para os torturados, a 36ª DP era apenas a face legal, porém tênue, do regime que instaurou os anos de chumbos no país a partir de 31 de março de 1968.
Na época Dr. Nilsson facultou as dependências da delegacia e até destacou um funcionário para acompanhar a reportagem do Gazeta.
Descemos as escadas em que Herzog e Manoel Fiel Filho desceram e entramos naquela que teria sido a cela na qual Vlado foi morto, ficando dependurado pela gravata, mas com os pés nos chão. Centenas de outras pessoas passaram pelos corredores estreitos em direção à tortura e à opressão, dentre eles a atriz Bete Mendes, o deputado Adriano Diogo, o vereador de São Paulo, Gilberto Natalini (PV), além de estudantes, professores, advogados e religiosos, como frei Tito, que passou pelo cárcere das Operações Bandeirantes, a célula mater do Doi-Codi.

ESQUELETOS
O que mais chamou a atenção não é fato de a 36ª DP ter sido reestilizada.
O que ainda impressiona são as marcas do tempo que o tempo não consegue apagar pelas mãos dos homens.

A história se impõe feericamente em todos os cantos nos porões, no andar debaixo onde ficaria a cela de Herzog. A sensação é de que se entra em parte de uma história que nunca deveria ser esquecida, mas que estão tentando sepultá-la. Logo a diante, um surpresa para lá de desagradável: bem frente à cela famosa do jornalista, num puxadinho construído pós-militares, há uma churrasqueira de tijolo a vista.

Parte da antiga carceragem, atualmente remodelada. Conjunto tinha 10 celas

Talvez sirva, sim, para aqueles momentos de descontração diante de um local onde o terror imperou com o ideário da lei dos gorilas, como eram chamados os milicos linha dura do regime que perdurou 17 anos de obscurantismo.

Silvaldo Leung Vieira, o fotógrafo responsável pela foto de Vladimir Herzog enforcado, visitou o local recentemente, acompanhado por membro da Comissão de Verdade do Estado.
Na época, o espaço era separado por divisórias de Eucatex em três salas de interrogatório: duas menores, onde era armado o pau-de-arara; a terceira, mais espaçosa, com uma escrivaninha e a cadeira-do-dragão.

Complexo era formado por três unidades, contando com a 36ª DP

Os representantes da OAB-SP também estavam presentes, junto com ex-militantes que foram presos e torturados no local.
É o caso da advogada Darci Miyaki, de 67 anos, e membros do Grupo Tortura Nunca Mais e o Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça.
O que se vê dentro de onde funcionou um dos centros de repressão da ditadura é abandono. Como se a vida fosse um nada e a ditadura um desvão simples da nossa história.

Delegacia por fora permanece a mesma dos tempos de chumbo
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