Gazeta Itapirense

Crônica de um hospício – por Heloísa Rossêtto Patricio

Ele matou minha irmã. No verão do ano passado, minha irmã recebeu uma proposta de um dos solteiros mais cobiçados do Estado, o Visconde e amigo do Imperador do Brasil, Carlos de Bragança. Na festa da mulher do governador, o pedido foi feito. Carlos se ajoelhou perante minha irmã quando a música cessou e pediu que lhe desse a honra de aceitar sua mão em casamento. Surpresa com a tamanha falsidade do Visconde a proferir tais palavras, ela fez o que eu a havia orientado. Recusou-o. Em frente a todos.

Ele se levantou do chão. Seu corpo inteiro tremia de raiva de minha querida irmã e de seu laborioso e fidedigno de seu amor, o homem a quem ela escolhera entregar seu coração. Ele não conseguiu aguentar tamanha humilhação ao ser trocado por um homem sem título e nem posses. Virou-se e foi embora a passos largos do salão de festa. Naquele momento, eu não tinha ideia dos obstáculos que enfrentaria com minha irmã jurada de morte por um homem poderoso.

Famosa por sua graça, seus cabelos loiros e olhos azuis, a beleza angelical era excepcional. Nenhuma outra mulher no mundo inteiro era tão bonita feito Elizabeth, ouso dizer. Ah, querida Elizabeth, estou aqui hoje porque nunca deixei de lutar por você, minha eterna irmã. Lembro-me de nossos piqueniques embaixo da árvore da grande casa em nosso sítio. Seus sorrisos eram tudo o que fazia meu dia ficar bom. Lembro-me de quando corria se esconder do capataz com Maria e as duas trocavam de roupas e fingiam ser Elizabeth Tudor e Carlota de Mecklemburgo-Strelitz.

Os homens sempre tinham olhos para Elizabeth. Bem arrumada e de família com algumas posses e certa importância na cidade. Contudo, existia apenas um de quem ela de fato gostava, Joaquim Boa Nova, mero agricultor devotado a labuta e a pequena família. Todos nós sabíamos de seu amor incondicional pelo jovem, inclusive papai. Em seus últimos anos de vida, ele concedeu a benção de se casar com o Sr. Boa nova caso ele fizesse um pedido e papai não estivesse aqui. Concedi minha benção a união de Elizabeth e Joaquim e esperava do fundo do meu coração que minha irmã caçula achasse felicidade em algum lugar neste mundo.

Papai, em decorrência de sua doença, não tardou a se juntar a mamãe na terra dos afortunados ao lado de Cristo, deixando a mim e Elizabeth neste mundo cruel e perverso infestado de demônios.

Carlos de Bragança, homem ruim, precisava de um herdeiro para quem pudesse deixar seu legado e decidiu que queria uma esposa, mas não qualquer uma, ele queria a minha Elizabeth. Ardiloso, manipulador e ganancioso, ele proferiu poucas palavras, porém o suficiente para causarem náuseas a qualquer um, a minha irmã, e decidira que ela seria sua posse, disfarçada pelo título de esposa ditado pelo Estado e pela Igreja.

Covarde e mimado como era, não resistiu ao ser recusado pela primeira vez em toda a sua escrupulosa e nojenta vida, se é que algum ser feito aquele deveria ser digno de ter uma vida.

Eu ouvi minha irmã gritar no gramado, corri para ver o que acontecera e vi o malévolo e endiabrado Visconde esfaqueando Elizabeth repetidamente em seu ventre. O covarde, ao me ver, correu para sua carruagem, que carregava o brasão da família e foi se esconder atrás de sua influência. A carruagem foi embora sem deixar rastros pelo caminho de terra.

Elizabeth se engasgava com o sangue que saia de sua boca, vermelho, o mais escuro que eu já tinha visto, aquele era o sangue da morte, da morte de minha querida Elizabeth. Segurando sua cabeça, onde as madeixas louras estavam manchadas com o sangue de uma inocente, gritei por socorro até minha voz não sair. Três criados correram em nossa direção, mas não me lembro do resto, minha visão ficou turva e eu cai na grama com o orvalho de outono.

Quando acordei, Maria me vestiu de preto e colocou um véu sobre minha cabeça. Era o velório de Elizabeth. O corpo estava coberto de flores até o busto para esconder o ventre dilacerado dos golpes. Sua pele e seu rosto refletiam a face de um anjo puro e lindo. Deitada lá, ela não parecia sentir dor alguma como sentira no dia anterior, pelo contrário, parecia ter encontrado a paz que eu tanto lhe desejara, mas não era assim que as coisas deviam ser, ela não deveria me deixar sozinha, ela havia jurado que jamais me deixaria neste mundo cruel, mas deixou, porque uma hora a morte chega para todos. Agora eu era a única da família que havia sobrado aos 29 anos.

Lembro-me de ter ido à polícia no mesmo dia e ter testemunhado contra Carlos de Bragança, acusando-o de assassinar minha irmã. Ouvi risadas, cuspidas em cima de mim, vindas das bocas deterioradas dos policiais pela precária higiene que exibiam, junto com a repulsiva saliva, dizendo que o Visconde jamais faria algo deste tipo. Chamaram-me de mentirosa e oportunista. Fui despejada da delegacia feito uma cadela.

Agora eu era uma mulher jovem, sozinha que teria de morar de favor com um primo que mal conhecia. Não tinha irmãos que pudessem herdar a propriedade de papai e o Estado não confiava que uma mulher poderia dirigir uma fazenda de café sem se submeter a homem nenhum.

Aquele tempo fora horrível. Cada lugar por onde eu passava, Elizabeth me vinha a mente, correndo pelos campos de onde eu imaginava ser o paraíso, junto de mamãe e de papai, os três riam e conversavam, já eu, era assombrada pelas profundezas do mundo cruel e desprezível a qual chamamos de lar. Eu só queria poder encontra-los, poder voltar para minha família, todos juntos e reunidos assim como fazíamos na Páscoa e no Natal. Mas eu não morri, talvez fosse meu destino pagar pelos erros de todo mundo.

Eu juro, minha irmã, do fundo do meu coração que fiz o possível para que aquele embuste fosse preso e condenado. Pedi que a justiça fosse feita, mas essa mesma Justiça me condenou, virando-se contra mim e desafiando todas as forças que eu vinha reunindo para viver.

Alegando insanidade de minha parte, fui jogada e trancafiada em um hospício. Uma mulher só poderia estar louca atestando que o Visconde seria tão cruel ao ponto de assassinar uma jovem donzela. Carlos era como um santo, embora não houvesse sido santificado pela igreja católica, mas assim era tratado por todos.

Hospício é uma palavra muito gentil para descrever este lugar. Eu o consideraria um inferno e se isso estiver longe de ser o inferno, que Deus tenha um lugar me esperando no paraíso. Tenho certeza que lá minha mão não estaria em carne viva e, meu corpo magro feito um graveto, não estaria implorando por sopa e roupa quentinhas.

Eu não sei quanto mais tempo aguentarei aqui neste lugar. O que fazem com os que alegam serem loucos é desumano, acredito que os animais vivem melhor que nós. Eu quero sair deste lugar, não sou louca, minha querida irmã, Lizzie. Você sabe! Por Deus, quero sair daqui, por favor! Sinto que cada dia que passa é tirado um pedaço de minha alma, minha vida se resume a cor cinza da parede desse lugar.

Sinto que vou morrer aqui, senão me matarem morrerei de desgosto.

Lizzie, vem me salvar, traga mamãe e papai junto de você, Lizzie, por favor! Vem salvar sua irmã, eu não aguento mais ficar presa aqui, por favor. Aguentei por tempo demais, minhas forças se acabaram. Quero ir para perto de você, mamãe e papai. Vem me buscar Lizzie. Traga a minha tão sonhada paz. Quero encontra-los no reino dos céus, onde o mal não reside, onde todos são felizes, onde todos vivem em harmonia ao lado do pai celestial.

Lizze, aguentei por cinco anos, desça com a carruagem dos céus e me leve a sua nova casa, vem me buscar, Lizze, vem me buscar…

 

Pedaço de papel encontrado no Hospício Pedro II, inaugurado em 1852. Registros atestam que fora escrito por Carolina Barreto em meados de 1870. Ela faleceu com trinta e seis anos, tendo passado sete anos de sua vida internada no lugar onde viria a morrer. Não existem dados que comprovem a natureza da morte e nem onde o corpo foi enterrado.

por: Heloísa Rossêtto Patricio

 

 

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