Nossa História: Certas figuras carismáticas da cidade
Costuma-se dizer que dessa vida nada se leva. Nem dinheiro, carros, casas ou qualquer outro bem. Talvez apenas as boas recordações é que farão parte da nossa mala na última viagem para aquela que dizem ser a última morada.
Quando se é criança esse pensamento não faz parte de nossa rotina. Sequer pensamos no futuro, que dirá no que será de nós dali a muitos e muitos anos.
Mas, com o decorrer dos anos tudo vai mudando. Vemos pessoas queridas indo embora, lugares favoritos se acabando e a vida escorrendo pelo vão dos dedos.
Quando o tempo começa a tingir nossos cabelos de cinza e depois de branco é que começamos a ver que o tempo é cruel e dono de tudo. Talvez seja aí que passamos a pensar mais seriamente em tudo que já passou na vida.
Além daqueles que fazem parte da família e, por isso, integram a relação das pessoas que têm um significado especial em todos os sentidos, os amigos também marcam por serem importantes nos momentos em que mais precisamos. Mas, além de parentes e amigos mais próximos, dos colegas ou conhecidos, há aqueles que marcam por serem diferentes, embora sejam pessoas normais como qualquer outra.
Algumas figuras se tornam carismáticas pelo jeito diferente, por algum problema físico ou mental e até mesmo pela simplicidade. Durante minha existência já vi e convivi com várias dessas pessoas e todas, sem exceção, ficaram conhecidas por este ou aquele detalhe.
Foi assim com o Tonho Bacateiro, com o Cuadô, o Lazo que dirigia uma lata de 20 litros como se fosse seu carro e tantos outros. Pessoas simples, incapazes de fazer mal a alguém e desprovidas de qualquer maldade no coração.
Cada um do seu jeito marcou sua existência na Terra por certas peculiaridades que só os diferentes têm. E não há quem não se lembre deles com um carinho especial.
Tantas outras figuras carismáticas e folclóricas povoaram a infância, a adolescência e, porque não, a vida de muitos de nós. Pessoas simples, muitas vezes problemáticas, mas que acabavam angariando o carinho de todos por serem, antes de mais nada, puras e desprovidas de maldade.
Itapira sempre foi pródiga em criar suas figuras carismáticas. Nos dias de hoje nem tanto, mas algumas pessoas acabam caindo no gosto de todos pela simplicidade, simpatia, educação e outros adjetivos similares.
Na minha infância, vários foram os personagens que, além desses já citados, fizeram parte desse rol. Tinha o Roberto Carlos, aquele negro forte que entregava gás e seguia, de casa em casa, cantarolando as canções do Rei da Jovem Guarda; ou o Lázaro, que por muito tempo também entregou gás, primeiro na loja do Bacuri e depois com o Aurélio, e que cola convite de enterro nos postes. Pessoas humildes, trabalhadoras e que nunca fizeram mal algum a qualquer pessoa.
Há um, porém, que desde que me conheço por gente faz parte da minha rotina. Desde os tempos em que a molecada da vizinhança jogava futebol no meio da rua, que ainda era calçada com paralelepípedos nos quais muitas vezes ficava grudada a champa do dedão do pé, que ele freqüenta meu dia-a-dia.
Nelson Querosene, um humilde morador da coloninha, como era chamado o grupo de casas que havia na metade do escadão que liga o Centro ao Cubatão, onde hoje está um edifício construído pelo Carlinhos Marcati, sempre foi figurinha carimbada na rua de casa. Na minha infância ele já era um rapagão espigado e que na sua humildade não se envergonhava de pedir algo para comer quando tinha fome.
Qualquer coisa servia, desde que apaziguasse seu estômago. Lembro que ele ficou conhecido na rua de casa como Nelsinho Pão e Banana, por ser esse o seu sanduíche preferido, ou pela falta de outro recheio para colocar no pão.
Certa vez bateu na porta de uma vizinha de casa para pedir um pouco de comida e acabou pegando a dona da casa sem muita paciência para atendê-lo. O diálogo, mais ou menos se deu da seguinte forma: “a senhora não tem um prato de comida? Estou com fome”. Como a resposta para seu pedido foi negativa, principalmente porque a dona da casa estava atarefada e sem tempo para atendê-lo, Nelsinho não teve dúvida e mudou o cardápio para pão com banana. Novamente, ouviu um não como resposta, com a senhora afirmando que não tinha nem pão nem banana em casa. Nelsinho, então, na sua simplicidade, não pestanejou e lascou o veredicto: “tá ruim a coisa aí, hein?”, como querendo dizer que se nem pão e banana tinha na casa, significava que os moradores deviam estar passando por dificuldades.
Era esse o seu jeito de ser e continua sendo. Hoje, já aposentado e partindo para a casa dos 70, Nelson Querosene continua firme pelas ruas do Centro, prestando serviço para este ou aquele e pode ser visto comumente no comércio, nos bancos ou na praça. Sempre alegre e solícito, é incapaz de erguer a voz ou ter um gesto mal-educado.
Assim como Tonho Bacateiro, Cuadô, Roberto Carlos ou os dois Lázaros, Nelsinho Querosene já tem seu nome gravado na história da cidade como uma figura carismática e querida. Integra a lista daqueles que vieram ao mundo para fazer o bem e, se possível, esperar o bem de seus semelhantes.
Para onde quer que eu vá quando fechar minha mala para a última viagem, com certeza ele estará no álbum de figurinhas carimbadas que levarei comigo. Sempre me lembrarei dele como uma figura que marcou por nunca querer ser mais do que sempre foi.
Coluna publicada pelo jornalista Humberto Butti originalmente na versão impressa do jornal A Gazeta Itapirense de 14 de fevereiro de 2014