Seção Nossa História: Uma janela para o mundo
Sou de um tempo em que o silêncio imperava nas altas horas da madrugada. Um tempo em que as pessoas se recolhiam e aproveitavam a noite para o descanso.
Lembro bem que durante muitas e muitas noites em que o sono ia embora e meus olhos secavam, era na janela do meu quarto que eu me sentava para espiar a escuridão da noite e ouvir boas músicas. Era ali, de frente para o vazio que se formava entre a claridade do meu quarto e as poucas luzes do Cubatão, que eu via o tempo passar sem pressa.
Até meus 12 anos, quando eu ainda era um menino magricela de orelhas grandes, minha casa na Comendador João Cintra ainda tinha o formato antigo e meu quarto ficava no meio dela. Só depois da reforma e da ampliação é que ganhei um quarto com vista para o mundo.
E era ali, naquela janela, que durante muitas e muitas noites de minha adolescência, eu passava algumas horas olhando para aquele imenso vazio que se formava e para aquelas parcas luzes, como se estivesse procurando meu rumo.
Não foram poucas as vezes que, sentado ali naquela janela, com um pé no telhado do terraço e o outro apoiado na cama, vi a escuridão ir embora para deixar mais um dia nascer.
De fundo, invariavelmente, boas músicas tocadas na Rádio Mundial do Rio de Janeiro, sintonizada no Saratoga, o rádio herdado de meu avô Antonio Papaléo, e que era meu grande e inseparável companheiro. Era ali, naquela janela, que meu contato com o mundo se tornava mais amplo e meus pensamentos rodavam sem parar.
Até hoje guardo boas recordações daquela janela com vista para a parte baixa da cidade. Parece que foi ontem, mas o tempo é implacável e nos afasta cada vez mais de tudo aquilo que recordamos com saudade.
Ainda me lembro de tudo aquilo e, por incrível que pareça, apesar de tanto tempo, tudo está bem vivo em minha memória. O silêncio da noite, quebrado apenas pelo som baixo de meu inseparável rádio ou por um o outro galo cujo despertador deveria estar fora de sintonia.
Nunca mais voltei àquela janela, principalmente depois de um dia, não muito distante, em que criei coragem e, de volta àquela casa, abri aquela janela e me deparei com tudo aquilo novamente. Tudo estava como eu havia deixado em minha adolescência e parecia que o tempo tinha dado um tempo para mim.
Instantaneamente o mundo se abriu a minha frente e todos os bons momentos passados ali voltaram como num passe de mágica.
Apesar de estar de frente para o que sempre vislumbrei, o nó que se formou em minha garganta foi mais forte e minha emoção aflorou através de lágrimas de saudade.
Ali, naquele momento, já com cabelos pintados pelo tempo e com minha pequena Mariane no colo, fechei para sempre aquele ciclo de minha existência e decidi guardar aqueles bons momentos em um canto especial de meu baú de memórias.
Era como se estivesse enterrando um pedaço de mim.
Infelizmente o tempo e o mundo não param e a vida segue em frente, deixando pelo caminho tudo o que vivemos e vivenciamos. Restam apenas as lembranças de um tempo que não volta mais.
Coluna publicada originalmente em 27 de abril de 2014 pelo jornalista Humberto Butti na versão impressa do jornal A Gazeta Itapirense.